Por Anna Paula Strefezza
Começarei com a uma história de Rubem Alves sobre dois ursos que caíram numa armadilha e foram levados para um circo. Um deles, com certeza mais inteligente que o outro, aprendeu logo a se equilibrar na bola e a andar de monociclo, e seu retrato começou a aparecer em cartazes e todo o mundo batia palmas: “Como é inteligente”. O outro, burro, ficava amuado num canto e, por mais que o treinador fizesse promessas e ameaças, não dava sinais de entender.
Chamaram o psicólogo do circo e o diagnóstico veio rápido: “É inútil insistir. O Q.I. é muito baixo...” Ficou abandonado num canto, sem retratos nem aplausos, urso burro, sem serventia... O tempo passou.
Veio a crise econômica e o circo foi à falência. Concluíram que a coisa mais caridosa que se poderia fazer aos animais era devolvê-los às florestas de onde haviam sido tirados. E, assim, os dois ursos fizeram a longa viagem de volta.
Estranho que em meio à viagem o urso tido por burro parece ter acordado da letargia, como se ele estivesse reconhecendo lugares velhos, odores familiares, enquanto que seu amigo de Q.I. alto brincava tristemente com a bola, último presente.
Finalmente, chegaram e foram soltos. O urso burro sorriu, com aquele sorriso que os ursos entendem, deu um urro de prazer e abraçou aquele mundo lindo de que nunca se esquecera. O urso inteligente subiu na sua bola e começou o número que tão bem sabia. Era só o que sabia fazer.
Foi então que ele entendeu, em meio às memórias de gritos de crianças, cheiro de pipoca, música de banda, saltos de trapezistas e peixes mortos servidos na boca, que há uma inteligência que é boa para o circo. O problema é que ela não presta para viver.
Por muitos e muitos anos, a pedagogia buscou inspiração nos modelos trabalhistas, inspirados por Taylor e Ford acreditávamos que a disciplina e o condicionamento aumentavam a produção e ao lucro. Valorizámos o trabalho incansável e segmentado. Separávamos a cabeça dos braços, do corpo e do coração. E sabíamos que uns serviram para pensar e outros apenas para executar, e fazíamos tal distinção nas escolas, afinal que lugar melhor poderia ter para preparar os seres humanos para a vida?
E assim passamos a transformar crianças e jovens que carregavam em si um espírito selvagem, livre e cheio de ideias e sonhos em crianças condicionadas, temorosas, preocupadas em se destacar em sala de aula, para garantir chances de se destacarem no mercado de trabalho, crianças que buscavam a almejada estrela dourada na testa como representação de estarem no rumo correto, de se encaixarem num perfil desejado.
Pecamos ao aceitar um modelo vindo de pessoas não especializadas em educação e atrevo-me a dizer, não especializadas em seres humanos, deixamo-nos ser adestrados como animais, sim animais, seres não dotados de razão e raciocínio. Mas os tempos mudaram, hoje temos um imenso avanço tecnológico, somos seres mais evoluídos, esclarecidos, dotados de um pensamento mais crítico, somos mais experientes. Mas, se isso é um fato, porque então nossas salas de aulas são exatamente as mesmas? Onde está nosso pensamento libertador, nossa educação para a autonomia? Também foram condicionadas.
Condicionadas porque quem leva a educação de hoje é o aluno condicionado do passado, e pensar fora da caixa, leva tempo, é cansativo, demanda demais. E aí, por mero comodismo, repassamos a bola e doutrinamos mais 10, 100, 1000. Transformamos espíritos livres e ursos de circo. Não estou alegando que não há educadores libertadores, só estou afirmando que ainda há uma grande maioria de doutrinadores, mudar a história da educação não será fácil.
Acredito ser uma batalha imensa e dolorosa, principalmente pelo grande interesse político e social, mas cabe a nós, novos educadores, quebrarmos uma por uma as algemas de nosso povo.
Referencias: Rubem Alves, em Estórias de quem gosta de ensinar, 1993. Editora Papirus 11ª edição.
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